14 de abril de 2007

O Código Civil francês e a lição de Napoleão

Napoleão Bonaparte, não saciado com suas imensas vitórias políticas e militares, decidiu, assim que nomeado Primeiro Cônsul da França, reformar toda a legislação daquele país, com o intuito de adaptá-la aos ideais iluministas da Revolução.

Queria, também, deixar o seu nome marcado para toda a eternidade.

O próprio Napoleão, em certa ocasião, reconheceu que sua verdadeira glória não foi ter vencido mais de quarenta batalhas; o feito que ninguém conseguiria apagar, aquilo que viveria eternamente, era o seu Código Civil.

De fato, trata-se de obra fantástica, que serviu de inspiração para juristas de incontáveis países, e mereceu elogios até de poetas e literatos, como Paul Valery e Marie Henri Beyle.

Suas maiores virtudes, certamente, eram a simplicidade e a clareza de suas disposições, tão bem redigidas que qualquer cidadão com mediana instrução podia – e continua podendo até hoje, passados mais de duzentos anos de sua vigência ininterrupta – consultá-lo e entendê-lo.

Contam-nos alguns juristas, como quem nos conta uma lenda ou anedota, que a simplicidade e a clareza do texto, tão vestejadas, devem-se ao próprio Napoleão, que teria rejeitado os dois primeiros projetos que sua Comissão de notáveis lhe apresentou.

O primeiro deles tinha quase dez mil artigos, e era tão longo e intrincado que apenas uns poucos conseguiriam lê-lo e entendê-lo.

Com ele, ficaríamos inteiramente nas mãos dos juízes – teria dito o general –, os únicos com instrução e paciência para consultá-lo.

A Comissão, então, preparou um novo projeto, bem enxuto, com menos de oitocentos artigos. Porém, ele trazia apenas normas genéricas e pecava pela utilização de conceitos por demais abertos, amplamente sujeitos a variadas interpretações.

Pior agora – teria bradado, já impaciente, Napoleão. As leis são tão singelas que os juízes podem interpretá-las como bem quiserem...

Apenas aí, prestes a experimentar a lendária fúria de Napoleão, a douta Comissão parece ter encontrado a virtude mediana: um Código de leis simples, mas completas; claras, mas nem por isso singelas.

Parece ter funcionado. A reverência que ao Código desde sempre se presta e a longevidade da obra comprovam que as leis devem ser feitas para as pessoas, não para os livros ou para os juízes. Só assim elas são efetivamente cumpridas. Só assim elas perduram.

Por toda a eternidade.

Ubi homo, ibi societas. Ubi societas, ibi jus

Onde está o homem, está a sociedade; onde está a sociedade, está o direito.

A famosa lição de Ulpiano nos rememora que não há pessoa que viva sozinha e que, portanto, não há quem esteja liberto das amarras sociais. Todos obedecemos a regras, sem as quais não poderíamos conviver.

O direito permeia, compõe e orienta todas as atividades humanas. Integra o nosso cotidiano e não deixa de nos atingir nem após a morte.

E, mesmo assim, parece-nos sempre tão distante...

Por conta disso, o que pretende humildemente este blog é disseminar as notícias e novidades jurídicas para o meio “não-jurídico”, com a intenção de fomentar o interesse geral para esta disciplina, que nos parece, em geral, tão desinteressante.

Tendo sempre em vista a simplicidade e a clareza, tão caras ao general Napoleão.

Então, que o latinismo do título seja o primeiro. E único.

Falando em simplicidade e clareza...

Decisão do DD. Juízo da 6ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo, indeferindo pedido de credor que pleiteara a penhora on line das contas correntes, de poupança e investimento da devedora:

“Fls. 88/89: Denego, a postulação formulada pelo Exeqüente em seu petitório de fls. 86, pese embora a factibilidade, hodiernamente, da constrição judicial nos moldes em que pleiteada, ou seja, por via on line. É que a este Juízo se inclui a rol entre aqueles que na communis opinio doctorum e na jurisprudência nacionais perfilham o entendimento de que a quebra do sigilo bancário - como, outrossim, do fiscal - apenas é juridicamente viável e admissível em casos excepcionalíssimos, na verdade, apenas quando em jogo o interesse público, o que, inequivocamente, não sucede in casu, onde estão envolvidos, inelutavelmente, interesses eminente e exclusivamente privados e particulares, não versando este processo sobre ação penal, o que significa dizer que nele não estão a realizar-se diligências e investigações de cunho persecutório-criminal e/ou instrução processual penal, hipóteses autorizativas da violação, mediante ordem judicial sempre, de dados bancários e fiscais (cf. o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988). No que pertine ao intervencionismo estatal - que está também a se materializar, hic et nunc, através do convênio nominado BacenJud - em conta corrente de titularidade quer de pessoa jurídica, quer de pessoa física, é do sentir deste Juízo que essa ingerência, sobre ofender, de maneira rutilante e flagrante, o que preceitua o artigo 620 do Estatuto Adjetivo Civil, preceptivo legal consagrador do princípio da menor onerosidade do devedor, atinge e tangencia, outrossim, as raias e os lindes da arbitrariedade e da inconstitucionalidade, já que se processa de modo a empecer qualquer possibilidade de defesa do devedor antes de sua consolidação e sedimentação, ensejando, amiúde, quando o devedor é pessoa física, a expropriação de conta-salário, e, na hipótese de ser pessoa jurídica, o emperramento e a inviabilização da sua atividade empresarial. É inconteste que o poder estatal assim exercitado, ou seja, de maneira premeditada e atrabiliária contra o jurisdicionado, na suposição de que a maioria das pessoas que devem em nosso país - pese em a conjuntura econômica recessiva em que vivemos há anos, que deve ser creditada primordialmente a atos de corrupção, improbidade administrativa e rapinagem ao erário, enfim, a atos denotativos de cabal desleixo e descuramento do Poder Público para com os interesses nacionais e da coletividade, cujos responsáveis, todos o sabemos, continuam impunes e seus sigilos fiscal e bancário intocáveis, o que, de resto, é público e notório - na suposição de que essas pessoas se tornaram inadimplentes acintosa e dolosamente - o que, à evidência, encerra execrável e lamentável preconceito e pré-juízo a ser prontamente proscrito, alijado e pulverizado pelo Poder Judiciário, cuja atuação deve primar e timbrar, sempre, como se sabe, pela imparcialidade e eqüidistância das partes litigantes -, o poder estatal assim exercido deixa o jurisdicionado, seja ele pessoa física ou jurídica, cabalmente impotente e inerme para obviar, antes de sua concretização, a penhora de bem patrimonial de sua propriedade, sendo perfeitamente intuitivos e previsíveis, pelas regras ordinárias de experiência (cf. o artigo 335 do Código de Processo Civil) e pelo senso comum, os corolários nefastos e deletérios à higidez e à estabilidade financeira - já combalida, tanto que excutido judicialmente do devedor se placitado incondicionalmente indigitado procedimento pelo Estado-Juiz, situação que se agrava na hipótese de a expropriação recair sobre conta-salário, já que, como é sabido e consabido, este é, nos expressos termos do artigo 649, inciso IV, da Lei de Rito, impenhorável. Ainda a justificar a necessidade de indeferimento de penhora de ativos financeiros da maneira como estabelecida no convênio celebrado entre o Poder Judiciário e o Banco Central do Brasil, convênio nominado BacenJud, o que preceitua a Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, diploma legal com a qual se nos afigura em descompasso a famigerada penhora on line de contas correntes e aplicações financeiras do executado, visto que implementada em flagrante e palmar afronta a direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, sobrelevando aqueles estatuídos nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Magna Carta de 1988, quais os de que ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’ e ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes’. Em suma, temos, a partir do raciocínio até aqui expendido, que a penhora on line, nos moldes em que prevista a sua implementação no convênio BacenJud, esvazia e neutraliza, por completo, o devido processo legal e as garantias a ele inerentes, e, pois, direito fundamental do cidadão assegurado pela Lex Fundamentalis em vigor, impendendo, nessa perspectiva, seja indeferido o pleito formulado a fls. 86 com a nota de que não justifica o seu albergamento nem mesmo a nítido e indiscutível caráter público do processo, cuja razão primordial e primacial de sua existência é justamente a garantia e o resguardo, com vistas à pacificação social com justiça, eqüidade e equanimidade, que se historiciza com a solução, pelo Poder Judiciário, dos conflitos intersubjetivos de interesses sem arbitrariedade, a garantia e o resguardo das liberdades públicas e dos direitos fundamentais constitucionalmente sufragados e consagrados, não sendo lícito ao Órgão Jurisdicional atuar de maneira discriminatória e preconceituosa, porquanto essa postura se mostra incompossível com o seu dever de imparcialidade e eqüidistância dos protagonistas do litígio sub judice. Isto posto, delibero no sentido de que a Exeqüente volte a se manifestar em termos de prosseguimento. Tollitur quaestio! Intimem-se, publicando-se.”

Ufa..!

Confira aqui, no site do Tribunal de Justiça de São Paulo (processo n° 583.00.2001.001177-9).